- “A sociedade cria o crime quando define o que é crime, orienta quem deve ser preso, quem não deve ser preso (…) se o problema é social e comunitário, ele não será resolvido fora desse contexto”, Carlos Magno Cerqueira, in “Media e Violência Urbana”, pág. 39
Maputo acolhe, de 11 a 12 de Março corrente, o primeiro seminário nacional sobre Criminalidade e Sociedade, evento que nos levou a redigir este artigo. Eis algumas das questões sobre as quais gostaríamos que se reflectisse: Como é que o Estado administra a convivência social, para que ele possa reivindicar comprometimento com o combate ao crime? Como é que a cidadania e as relações sociais são construídas? Não terá chegado o tempo de nos preocuparmos mais com a identificação de problemas e não com o delineamento de pseudo-soluções? Que tal se os órgãos de segurança pública, os cidadãos e os media repensassem os seus papéis?
As lições de Blair
Quando foi confirmado candidato do Partido Trabalhista às eleições de 1997 no Reino Unido da Grã-Bretanha, Tony Blair sabia, de antemão, que seria extremamente difícil tirar os conservadores do poder; lá estavam eles faziam 18 anos; para conquistar o poder, o Partido Conservador teve que desenhar uma estratégia de combate ao crime, que era o maior problema do então naquele país, que pudesse convencer o eleitorado, esse que já estava farto e agastado com a fraca resposta do então governo do Partido Trabalhista.
Como fosse uma boa estratégia de combate ao crime, o Partido Conservador conseguiu mesmo o voto dos eleitores, com o que empurrou o Partido Trabalhista para a oposição. E mantiveram-se, os conservadores, no poder por nada mais, nada menos que 18 anos, oferecendo aos cidadãos das melhores estratégias e tácticas conhecidas para e/ou no combate à criminalidade.
Ao longo desse tempo todo (18 anos) os conservadores se tornaram especialistas do combate ao crime. A Grã-Bretanha tornou-se uma sociedade extremamente policial, de tal sorte que, depois das 21, qualquer ‘estranho’ que se pusesse a caminhar por um bairro ‘estranho’ era interpelado por populares, para relevantes interrogatórios. Tudo visando uma coisa: a prevenção do crime.
Quando deu a sua primeira entrevista televisiva, nessa sua qualidade de candidato trabalhista, Tony Blair confessou que reconhecia a perícia que os seus oponentes conservadores tinham no combate à criminalidade, e que lhe seria difícil, ou mesmo impossível, apresentar uma proposta melhor que a deles. Tony Blair não estava, de jeito nenhum, como se pode levianamente pensar, a se assumir como um candidato perdedor, como os tantos palhaços políticos que temos por cá, que bastas vezes nos disseram que se candidatam “não para ganhar, mas para animar a festa democrática”...
Tony Blair afirmou, nessa entrevista, que iria apostar no combate às causas do crime como tal, uma vez que, no seu entender, só assim é que o crime se veria razoavelmente combatido. Explicou, por exemplo, que criaria condições políticas e financeiras para que o sector privado fosse produtor de empregos. E assim foi ganhando adeptos, visto muita gente, conservadores incluso, despertou do sono profundo, passando a perceber que o crime tem, na verdade, ‘raízes’, sobre as quais tinha que se direccionar a actividade combativa.
Em sede das urnas, ele ganhou folgadamente o pleito eleitoral. E como as suas políticas tivessem como epicentro a promoção do bem-estar dos cidadãos, ele foi reeleito nas eleições seguintes, até que demitiu-se do cargo por outros motivos que não cabem neste espaço, tendo sido substituído pelo indigitado trabalhista Gordon Brown.
Sociedade cria o crime?
O fenómeno da criminalidade é preocupante, nos dias que correm, em vários países, sendo Moçambique um deles. Consciente dessa triste realidade, o governo, através do Ministério da Justiça, promove, a partir de hoje, um seminário nacional sobre Criminalidade e Sociedade, no qual serão apresentados discursos oficiosos e oficiais, opiniões percepções de cidadãos e resultados dalguns estudos sobre a matéria, com particular destaque para os referentes aos linchamentos, que se estão a tornar a regra cá entre nós.
A ideia de a criminalidade ser discutida tendo-se em conta o que a nossa sociedade é hoje nos parece muito acertada como princípio. A sociedade, como certa vez defendeu o comandante brasileiro Carlos Magno Cerqueira, cria o crime quando define o que é crime, ao mesmo tempo que orienta quem deve ser preso e quem não deve ser preso.
A nosso ver, a purificação da instituição policial é, no nosso país, uma das acções mais que urgente nesta luta contra a criminalidade. Há, dentro da Polícia, muitos agentes-bandidos, que funcionam como informadores e/ou estrategas das redes criminais, com o que muitos planos acabam por morrer ‘de morte matada’, muitos antes de serem postos em prática.
Há uns anos, por exemplo, um grupo da defunta “Brigada Mamba” deslocou-se à vila da Macia, no distrito de Bilene, província de Gaza, para uma operação de neutralização e detenção de indivíduos que eram catalogados de cadastrados perigosos. Lá chegaram com tudo bem estudado e o plano funcionou. Os ditos cujos foram encontrados no seu ‘comando operativo’, tendo sido detidos.
Noite adentro, enquanto os agentes envolvidos naquela operação regressavam a Maputo, com os fora-da-lei devidamente neutralizados, eles (os agentes) começam a receber mensagens intimidatórias nos seus telefones celulares, aconselhando-os a deixarem “os nossos homens” em liberdade, sob pena de aqueles pagarem com as suas vidas.
No seio de mais de três milhões de números de telefones móveis online, os que estavam a ameaçar os referidos agentes tinham que ter um super-poder para conseguir descobrir os números dos homens da Polícia. Na verdade, alguns dos seus colegas, talvez seus superiores hierárquicos, é que passaram-nos a outros elementos do grupo dos que com eles se encontravam.
A verdade é que os neutralizados foram levados até Maputo, seu destino. Verdade também é que os elementos da defunta “Brigada Mamba” foram abatidos quase todos, um por um, até que ela foi extinta. Isto mostra que os maiores inimigos dos que, dentro da Polícia, se mostram dispostos a dar de tudo para combater a criminalidade, estão bem acomodados na instituição policial.
A convivência com o crime
O que nos parece certo, neste momento, é que a sociedade vai ter mesmo que conviver com o crime. A forma como essa convivência será viabilizada terá que ver com a forma como todos os actores – O Estado e os seus órgãos de segurança pública, os cidadãos devidamente organizados e os media, quais (re)produtores da imagem do crime, do criminoso e dos órgãos de controlo social – relevantes visualizarem o crime.
Ao nível dos discurso político, é recorrente ouvir chavões do tipo “temos que erradicar o crime”. No seminário que esta quarta-feira inicia, não nos espantaremos se ouvirmos o Presidente da República, Armando Guebuza, ou a ministra da Justiça, Benvinda Levy, a dizerem que “temos que erradicar o crime”. É preciso, alertam-nos vários estudiosos do fenómeno criminal, “entender o crime como um fenómeno normal da sociedade”. Normal, dizemos nós, talvez não. É mais razoável concebê-lo como algo comum...
Como é que o Estado administra a convivência social, para que ele possa reivindicar comprometimento com o combate ao crime? Como é que a cidadania e as relações sociais são construídas? Não terá chegado o tempo de nos preocuparmos mais com a identificação de problemas e não com o delineamento de pseudo-soluções? Que tal se os órgãos de segurança pública, os cidadãos e os media repensassem os seus papéis?
Muitos questionam, por exemplo, o facto de os media chamarem, para as suas primeiras páginas ou para a abertura dos seus jornais sonoros ou telejornais, factos criminais que envolvam sangue, em detrimento das raras acções de sensibilização e educação no quadro da prevenção criminal; esquecem-se, os que assim pensam, de se informarem, antes, das lógicas da actividade jornalística, sobretudo no dinâmico contexto actual, em que a exclusividade já é, ela mesma, um valor-notícia.
Pode-se dizer, com alguma segurança, que temos o azar de ser um país em que pensa, recorrentemente, que a reprodução do medo é a melhor forma de sensibilizar as pessoas. O Ministério do Interior usou, durante muito tempo, a pública TVM para cometer das impensáveis barbaridades, substituindo-se, inclusive, aos tribunais. Nessa palhaçada toda, os que faziam o programa mais se preocupavam em julgar e condenar ‘sumariamente’.
Os fundos de que o Estado dispõe para acções de educação e sensibilização neste domínio podem ser usados de uma forma mais frutífera. O governo, que não precisa especializar-se em tudo, pode passar esses fundos às organizações da sociedade civil, para acções dessa índole.
Outro aspecto que julgamos ser importante no binómio criminalidade-sociedade é a solidificação e institucionalização de mecanismos locais de resolução de problemas criminais. Referimo-nos, por exemplo, à questão dos tribunais comunitários, que tanto ajudariam os cidadãos a encontrarem as respostas que, de outro modo, dificilmente as encontram.
Sem soluções tais, a barbárie toma conta das mentes. Nesse quadro, destacam-se, pela negativa, os linchamentos que ocorrem com muita frequência um pouco por todo o país. Ainda bem que o assunto será objecto de discussão durante a reunião desta semana.
Tuesday, March 10, 2009
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6 comments:
erecino, na altura em que tony blair abandonou ou foi obrigado a abandonar o poder o crime violento tinha regressado às ruas de londres e noutras cidades. apenas um parêntesis. quando falas de purgar as fileiras da polícia não estarás a trazer soluções? será assim uma questão tão linear como tentas dar a entender? porquê não pensar em outras formas? se purgarmos, o que acontece aos purgados? andam nas ruas ou são encarcerados? em ambas as circunstâncias isso não poderá aumentar o número de criminosos em moçambique? acho eu que temos que pensar fora da caixa e encontrarmos melhores formas para combater a criminalidade.
Temos, como bem dizes, encontrar melhores formas para o combate a criminalidade. Nisso, tem que haver um ponto de partida. Qual sera? Talvez esteja, o ponto de partida, dentro duma caixa!...Dentro da weberiana jaula de ferro eh que nao, claro. O essencial, repito, eh a identificacao do problema. Pode ser que, nalgum momento, a fronteira entre o problema e a solucao seja tenue. Bem provavel. Quanto ao Tony Blair, has-de ter entendido que o que me levou a citar a experiencia dele foi a "inovacao" que ele trouxe ao debate em torno do combate a criminalidade, e nao o que o fez sair do poder. Posso nao ter comunicado. Eh das minhas fraquezas, humano que sou. Vamos a isso? Tudo quanto temos que fazer eh procurar solucoes do tipo causa-efeito. A pluralidade causal dos fenomenos sociais eh algo a ter em conta. Obrigado, ilustre!
Pequena correccao, caro Bayano: temos que identificar o problema e procucar, dai, solucoes que nao sejam do tipo causa efeito. A pluralidade causal dos fenomenos sociais eh algo a ser tomado em conta. Obrigado, ilustre!
caro erecino,
concordo que temos que encontrar o ponto de partida partindo (pleonasmo) da identificação do problema. acho que a dificuldade poderá residir aqui, principalmente no que tange ao entendimento da sociedade sobre o que é a criminalidade. temos é assistido à debate emotivos que nos encegam visto que na maioria dos casos somos as vítimas. já estou a divagar! importa referir que a tarefa de identificar o problema não é apenas do governo e/ou a tal sociedade civil. deve envolver a todos nós. alías, acho essa uma prioridade nacional. pessoalmente, até consultaria alguns dos criminosos para ajudar-nos a resolver a problemática.
abraços
ps: mencionei o tony blair para dizer que foi nos seus mandatos que a criminalidade subiu e não que tenha sido essa a razão da sua queda.
A luta continua, caro Bayano. Este eh um assunto que a todos deve preocupar. Cumprimentos e ate breve
Erecino, tens toda a razão, para combater eficazmente o crime é necessário conhecer as suas causas e eradicá-las. A citação que fazes de Carlos Magno Cerqueira me leva para a ideia da evolução das sociedades que, "cria o crime quando define o que é crime, orienta quem deve ser preso" criminalizando ou descriminalizando através de lei saídas dos órgãos competentes.
Então, a busca de conhecimento deve ser contínua e envolver a prevenção do surgimento de novas formas de criminalidade. É difícil, tanto que é secular a afirmação de que não existe sociedade sem direito e que este existe para conformar as relações dentro da sociedade, embora isto nunca deva ser tomado como capitulação, antes pelo contrário, deve implicar constante inovação.
A comunidade deve participar na prevenção da criminalidade. O exemplo que trazes da GB dos tempos de Blair implica uma sociedade organizada a todos os níveis; bairros organizados em que, em cada quarteirão, prédio, ou rua as pessoas se conheçam (só assim podem identificar o estranho) etc; uma interacção entre os moradores dos bairros e a polícia que está sempre à "mão" e muitas outras coisas.
Uma das coisas que mais tenho saudade dos anos 85 (ano em que cheguei a Maputo) em diante na cidade de Maputo, era essa organização que se fortalecia nas campanhas de limpeza e outras. Será possível esse modelo nos dias de hoje? Quem o escangalhou? Nós claro, com os novos ventos que "não se compadeciam com aquele nível de controlo"; tinhamos que ser LIVRES.
Se a comunidade participa na prevenção, que papel deve ser reservado aos tribunais comunitários? O julgamento desses casos ou a mediação dos conflitos que surgem entre os membros dessa comunidade? É que o fenómeno criminal encerra em si várias coisas, algumas das quais só podem ser assumidas pelo próprio Estado através de órgãos próprios como sejam os tribunais.
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